domingo, 17 de abril de 2011

O massacre de Realengo como símbolo maior da violência que nos ronda




      Enquanto éramos inundados com imagens horripilantes do massacre ocorrido na Escola Municipal Tasso da Silveira em Realengo, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, outra notícia passou quase sem ser notada. Em uma matéria curta e grossa foi informado que a prática da tortura continua sendo uma rotina em delegacias e presídios pelo Brasil afora, vinte e seis anos após o fim do regime militar de 64.  Ainda que o número dos casos relatados seja baixo, o governo federal reconhece que o controle deste tipo de situação é bastante precário, e que as poucas vítimas que têm coragem de registrar os abusos recebidos representam apenas a ponta do iceberg. Para compor esse cenário dantesco, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo reconheceu recentemente que o aumento da velocidade com que as equipes policiais chegam à cenas de crimes teve como resultado mais notável o aumento do número de mortes. Como em muitos casos os mortos não tinham registros criminais anteriores, a própria Secretaria de Segurança teve de lançar uma força tarefa para investigar este fenômeno, estabelecendo medidas de controle mais rígidas para os chamados “autos de resistência”.
    O que essa situação toda demonstra é que a violência urbana é um fenômeno multifacetado que parece estar crescendo de forma vertiginosa. Como os índices de violência no Brasil já estão entre os mais altos do mundo, esta situação é para lá de preocupante. Um fato que sobressai nesta situação é a predominância nos ferimentos por arma de fogo em todo o país.   Um dado realmente alarmante é que hoje existem mais de 10 milhões de armas nas mãos de pessoas comuns, que as usam para resolver conflitos pessoais. Em função disto, o Brasil ocupa atualmente a 1ª posição no ranking mundial de mortes por armas de fogo, num total de 34.000 mortes anuais. Mas, se não fosse pelo evento extremado que envolveu o assassinato de doze crianças, a maioria de nós continuaria negligenciando o fato de que o acesso às armas de fogo foi banalizado, em que pese a existência de uma legislação bastante rigorosa.  Como foi demonstrado nas apurações já feitas em relação ao massacre de Realengo, o assassino comprou facilmente uma arma de dois intermediários que, por sua vez, a obtiveram sem maiores dificuldades de fontes igualmente clandestinas. O que ninguém ainda apurou é como o assassino de 12 crianças adquiriu a farta munição, já que obtivera suas armas de forma ilegal!
     A verdade é que o Brasil hoje é palco de um animado mercado clandestino de armas. Isto está enfatizado pelos eventos de Realengo, mas já tinha sido escancarado pela fuga de centenas de traficantes da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão. Quem na se lembra daquela cena digna do filme “Apocalipse Now” onde numa corrida frenética os traficantes escapavam com fuzis e metralhadoras e com mochilas cheias de munição? E depois disso, o que aconteceu para se conter o tráfico de armas? Se não fosse pela instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, eu diria que nada. E o pior é que os membros desta CPI, que tem à frente o deputado Marcelo Freixo (PSOL/RJ), continuam tateando um campo minado à procura de respostas sobre quem está colocando todo esse armamento em nossas ruas. Aliás, é preciso notar que ao presidir mais uma CPI desta natureza (já que também presidiu a CPI que apurou a ação das milícias), o deputado Marcelo Freixo e seus companheiros corajosamente atraíram para si um nível quase inimaginável de risco pessoal.  Afinal de contas, os interesses sendo contrariados são muitos, e alguns dos personagens envolvidos são bastante conhecidos por sua brutalidade. 
     Mas temos de nos perguntar o porquê da persistência de fenômenos que contribuem para a disseminação da violência em uma sociedade que é marcada por profundas desigualdades sociais e econômicas. Um primeiro aspecto parece ser mais do que óbvio. Como não há disposição para se acabar com a desigualdade, uma conseqüência é que, tampouco, existe disposição para modernizar o Estado brasileiro.  O que temos de fato é a persistência de um Estado mais preocupado em aplicar uma política de segurança que protege apenas as camadas mais abastadas da população, enquanto que se aplica aos pobres uma visão de controle localizado da violência que reproduz de forma lapidar a experiência norte-americana no Vietnam.  Neste contexto é que se explica a manutenção da prática da tortura e da eliminação sumária de centenas de cidadãos todos os anos como fenômenos corriqueiros e naturalizados, enquanto se faz quase nada em prol do aparelhamento da polícia com equipamentos de inteligência e de perícia.
      Diante deste quadro é que fica evidente que não bastará controlar o tráfico de armas ou equipar melhor as forças policiais. O Brasil precisa efetivamente modernizar o funcionamento do Estado. Isto requererá que sejam tomados passos decisivos no sentido da sua efetiva democratização, começando por reformas estruturais no acesso à propriedade da terra e na distribuição da riqueza nacional.