sábado, 5 de novembro de 2011

Che Guevara: um ícone que ainda vive nas ruas e praças de um mundo em convulsão

Marcos A. Pedlowski, artigo publicado no número 219 da Revista Somos Assim


A morte de Ernesto CheGuevara pelas mãos do Exército boliviano e de agentes da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA) acaba de completar 44 anos. Além de morrer pelas mãos de um pelotão de fuzilamento mambembe nos confins dos Andes bolivianos, Guevara ainda teve seu corpo enterrado de forma clandestina para evitar o seu endeusamento pelos camponeses pobres que tentava libertar. Esta tentativa de seus algozes foi em vão, e hoje a localidade de Villagrande se tornou um ponto de peregrinação dos camponeses pobres da Bolivia.

Mas a persistência da figura de Guevara após mais de quatro décadas de sua morte ultrapassa os limites territoriais de sua América do Sul, terra onde nasceu e morreu, já que a face imortalizada na fotografia “Guerrilheiro heróico”, feita pelo fotógrafo Alberto Korda, aparece praticamente em todas as manifestações de protesto que estão ocorrendo diversas partes do mundo. Guevara é uma figura praticamente onipresente, pois sua imagem pode ser vista tanto nas ruas gregas onde ocorre uma feroz resistência aos planos de austeridade fiscal impostos pelo FMI e pela União Européia, ou nas manifestações da chamada Primavera Árabe, e até em atos em defesa dos imigrantes nos Estados Unidos da América.

Curiosamente, o fato de Che Guevara ainda inspirar sentimentos de altivez e firmeza de propósito já havia sido percebido até pela indústria fashion, o que levou ao surgimento de uma tendência fashion conhecida como “Che chic” que se baseia justamente na venda de produtos associados à imagem de Guevara.  Esse aparente paradoxo começou a ser fomentado quando o artista irlandês Jim Fitzpatrick lançou uma série de pôsteres em 1967 centrada na fotografia de Korda. Mas a verdade é que Che Guevara se tornou uma espécie de franchise fashion, existindo uma grande quantidade de produtos consumidos por pessoas de diferentes idades e, como já notado, localizadas em todas as partes do mundo, independente de credo, grupo étnico e religião.

Ainda que esta tendência do Capitalismo de se apropriar de personagens históricos para gerar riqueza não esteja restrita a Guevara, o fato é que o caso do revolucionário argentino é impar. Mas o que atrai as pessoas a adotarem os produtos “Che chic”? O fato é que a trajetória de vida de Ernesto Guevara foi marcada por uma postura que deveria desencorajar o papel de ícone cultural que assumiu; se olharmos o percurso adotado por Che Guevara, veremos que o seu desprendimento em relação às questões materiais e à acomodação o tornaram uma figura humana singular. E talvez esteja justamente aí a razão da persistência da sua importância enquanto personagem histórica. O escritor uruguaio Eduardo Galeano pareceu confirmar isto quando afirmou em sua obra “O Livro dos Abraços” que a misteriosa energia que vai muito além da morte e dos equívocos cometidos por Ernesto Guevara viria de umfatomuitosimples: o fato de que ele (Guevara) seria um raro exemplo dos que dizem o que pensam e fazem o que dizem.

Mas será que o pensamento de Che Guevara tem ainda algum valor no atual contexto histórico, ou seu valor é apenas icônico? Se olharmos as razões pelas quais Ernesto Guevara abandonou a posição cômoda que a vitória contra Fulgêncio Batista lhe possibilitou com um dos lideres das tropas guerrilheiras, talvez a resposta seja sim. A verdade é que o seu rompimento com Fidel Castro se deu pelo alinhamento com a União Soviética, aposta cubana para garantir a sobrevivência da revolução ao bloqueio econômico, político e militar imposto pelos EUA. Guevara, ao contrário de Fidel, via nisto um grave perigo para a Revolução Cubana, preferindo adotar a articulação internacional como forma de disseminar a experiência vitoriosa dos cubanos.  Olhado sob esse prisma, o do espalhamento da organização dos oprimidos, é que a figura histórica suplanta até ao fracasso último que é morrer pela mão dos inimigos.

Talvez seja por essa visão de integração dos descontentes em escala global, a despeito dos riscos pessoais, é que estejamos assistindo ao reforço do ícone em lugar do seu enfraquecimento. Por uma destas muitas ironias que a História nos oferece, o atual momento do Capitalismo requer a presença de figuras que expressem algum tipo de coerência entre o que se diz e o que se faz.  E ninguém melhor do que Guevara para oferecer às multidões vivendo nos países ricos, e que hoje se vêem diante da falência de um modelo de sociedade baseado na futilidade e no desperdício, algum tipo de força moral nesse contexto caracterizado por uma crise que ultrapassa o elemento econômico e alcança aquilo que se convencionou chamar de alma humana.

Ainda que Ernesto Guevara não seja o único de uma estirpe muito peculiar de seres humanos, aqueles que sobrevivem à sua morte física, há de se reconhecer que ele talvez seja o que mais se faz necessário no presente momento histórico. Afinal de contas, talvez, nunca antes na história da Humanidade tenhamos precisado tanto de líderes que estejam dispostos ao sacrifício extremo em nome das idéias que dizem defender.  Por isto tudo, longa vida ao Che!