terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Nos escombros do jornalismo

Por Sylvia Debossan Moretzsohn 


O que pode qualificar e legitimar o exercício do jornalismo é a sua capacidade de transmitir informações confiáveis mesmo nos momentos de maior tensão. Inclusive na televisão, embora esse meio seja muito mais permeável às armadilhas do espetáculo, por motivos óbvios.

Canais por assinatura dedicados ao jornalismo, como a Globonews, deveriam escapar a essa armadilha. Porém, esse canal várias vezes cedeu a ela, no episódio do desabamento de três prédios no Centro do Rio, na noite de 25 de janeiro.

Passado o impacto inicial, agravado pela surpresa inevitável de se ver uma construção antiga e sólida vir abaixo e levar consigo outras duas igualmente bem conservadas, a cobertura das operações de salvamento precisaria ser acompanhada da tentativa de identificação das causas do desastre, o que requer serenidade e identificação das fontes adequadas para opinar.

Algumas dessas fontes foram acionadas: representantes do CREA-RJ, do Clube de Engenharia e outros especialistas. No entanto, era fácil transformar o que eles diziam em sentenças condenatórias que corroboravam a tese eleita desde o primeiro momento pela imprensa, de forma geral: a de que as obras realizadas no nono andar do prédio maior foram a causa da tragédia.

O que diziam os especialistas? Que as obras eram irregulares ou ilegais. O que isso significa? Que as obras não estavam regularizadas, não estavam dentro da lei, não tinham um engenheiro responsável ou o registro necessário. Nada autorizava a concluir que, apenas por isso, fossem obras malfeitas. Entretanto, esta foi a conclusão automática, martelada até o limite do insuportável nas redes de televisão.

O mesmo ocorreu com os comentários sobre a irregularidade na abertura de janelas na parede lateral originalmente cega do edifício, como se isso pudesse causar abalos estruturais. Chegou-se mesmo a dar voz a um médico que filmou o prédio, tempos atrás, e que agora viria a comparar aquelas janelas a fissuras no esqueleto humano. O momento da fratura/desabamento seria, segundo ele, apenas questão de tempo.

Espalhando desinformação

Talvez guiados por uma percepção enviesada de prestação de serviço público, e partindo da ideia de que todo fato deve ser traduzido para o interesse imediato das pessoas comuns, os jornalistas começaram a especular sobre os riscos que, subitamente, todos passamos a correr em nossas casas. Particularmente notável foi a entrevista conduzida pela apresentadora do Jornal das Seis, da mesma Globonews,com um desses especialistas que, em vez de esclarecer – e de enfrentar o ônus de contrariar a tese proposta pela jornalista –, entrou no jogo e reiterou o discurso de que “as pessoas” preferem economizar e não contratam profissionais adequados para fazer suas reformas.

Como assim, “as pessoas”, se o caso em questão dizia respeito a uma empresa de tecnologia estabelecida num prédio comercial?

E pobres dos pedreiros e mestres de obra, desqualificados como não-profissionais, ou profissionais de segunda linha, sem bom senso nem experiência acumulada.

Naturalmente não ocorre a ninguém perguntar qual era a qualificação dos responsáveis pela construção do Edifício Palace 2, do falecido incorporador Sérgio Naya. Ou pelos prédios que caíram em Belo Horizonte, depois das chuvas do mês passado. Só para ficarmos em dois exemplos, um recente, outro nem tanto.

Ao mesmo tempo, deplorava-se a ausência de fiscalização e apelava-se para o estrito cumprimento das normas, numa cidade cercada por favelas, que, por definição, estão à margem da lei.

Corpos no depósito do entulho

Paralelamente, a cobertura sobre o resgate de vítimas e corpos trilhou o caminho habitual do apelo emocional exacerbado – nas entrevistas com os parentes angustiados pela expectativa de notícias, reunidos na Câmara Municipal, e, em especial, nas perguntas aos sobreviventes – “o que lhe passou pela cabeça quando você estava debaixo dos escombros?” – repetidas até que o close da câmera possa colher um soluço ou uma lágrima.

Inversamente, uma notícia chocante foi dada como se fosse a coisa mais natural do mundo: o 13º corpo foi encontrado já no depósito da Comlurb para onde estava sendo transportada a montanha de entulho. No dia seguinte, diante da ausência de informações sobre os cinco desaparecidos, sugeria-se que também estes poderiam estar por lá, misturados aos escombros. Talvez carbonizados, certamente mutilados.

Depois, a notícia de que esses corpos talvez nunca sejam encontrados.

Não seria o caso de se perguntar pela qualificação do trabalho de resgate, tendo em vista que o desastre ocorreu em área restrita, muito diferente – por exemplo – do que aconteceu na região serrana?

De um lado, alimenta-se a perplexidade. De outro, aceitam-se as explicações oficiais para um fato no mínimo surpreendente. Isso, num canal pago dedicado exclusivamente ao jornalismo.

“Interatividade” irresponsável

Criticar o que circula pela internet já exige outro esforço, mas um detalhe, pelo menos, mereceria menção aqui, porque se refere ao principal jornal carioca. Dias depois do desabamento, descobriu-se que o primeiro prédio a cair, construído no início dos anos 1940, tinha um recuo nos últimos andares, que desapareceu depois de uma reforma, supostamente na década seguinte. Ato contínuo, O Globo, em sua página no Facebook, publica as duas imagens (estilo “eu era assim, fiquei assim”) com o seguinte enunciado e a posterior indagação: “Foto da década de 50 mostra que prédio sofreu diversas modificações antes de desabar (http://migre.me/7IdMQ). Você acredita que essas mudanças possam ter causado o acidente?”

Deve ser isto que chamam de “interatividade”.

Já no início dos anos 1970, Pierre Bourdieu escrevia um artigo com o provocativo título “A opinião pública não existe”, em que desmontava a lógica perversa das pesquisas de opinião, baseadas na concepção de que todos devemos ter opinião sobre algo e, pior, que todas as opiniões se equivalem.

Nenhuma surpresa que essa lógica se dissemine no espaço virtual, embora, por sorte, haja sempre algum lampejo de inteligência. Pois, em meio a tantas bobagens, alguém respondeu: “Não sei. Sou brasileiro, mas, diferente dos outros 190 milhões, não sou engenheiro”.


[Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]