domingo, 12 de fevereiro de 2012

De volta à questão da insegurança alimentar: ter o que comer é apenas uma das facetas da fome 

Marcos A. Pedlowski, artigo publicado no número 232 da Revista Somos Assim



Uma discussão que deveria interessar a todos, mas que normalmente é relegada a círculos governamentais ou acadêmicos, se refere à segurança alimentar. O interessante é que quando nos referimos a esta discussão, na maioria das vezes as pessoas tendem a apontar para as estatísticas oficiais de que o Brasil é um país onde o problema da fome tornou-se irrelevante. Mas, afora o fato de que a propaganda oficial não reflete necessariamente a verdade, o problema é que segurança alimentar ultrapassa o limiar básico das pessoas que consomem o número mínimo de calorias diárias para não serem colocados na condição de famélicas. O fato é que atravessamos um período onde está estabelecido um grande paradoxo já que enquanto parte da população mundial sofre de problemas graves decorrentes da falta de alimentos, outra parte se encontra enferma por causa da obesidade. Os números existentes dão a expressão real desse paradoxo, quando se vê que ao mesmo tempo em que se estima a existência de 1 bilhão de famélicos, também há um número importante de pessoas obesas. 

Assim, a questão da segurança alimentar ultrapassa a dualidade dos que não tem o que comer e daqueles que comem em excesso. Recentemente, um filme francês realizado por um cineasta e um chef de cozinha vem colocando outro ingrediente, por assim dizer, neste debate; tendo como título o sugestivo “A república do Junk Food: Dom Quixote contra a indústria de alimentos”, o filme procura retratar os impactos trazidos pela padronização dos alimentos que são fornecidos em restaurantes. Neste sentido, procura analisar não apenas o aspecto econômico do problema, mas também o nutricional (com nutricionistas oferecendo contundentes depoimentos sobre o desenvolvimento da obesidade) e o cultural (com fartas evidências dos efeitos deletérios advindos da padronização do paladar), e que sugere que nos dias de hoje o consumidor comum pode ser levado a comer até feno se este for oferecido numa embalagem bonita. E de acordo com um crítico de cinema do jornal Le Monde, um aspecto igualmente interessante suscitado pelo filme é que muitas pessoas se sentem mais incomodadas com o que é mostrado no filme do que com o fato dos alimentos ingeridos diariamente fazerem mal à sua saúde. 

E aqui há uma questão chave para aqueles que conseguem se alimentar de forma regular refletirem: até que ponto o ato de ingerir alimentos garante que suas necessidades nutricionais básicas estão sendo atendidas? E uma pergunta que deveria nos intrigar ainda mais refere-se à questão do que é que estamos realmente ingerindo todos os dias? A gênese do problema é complexa e normalmente não fica evidente para os consumidores. Se já não bastasse o fato de que a produção de alimentos está cada vez mais associada ao uso de produtos com alto poder de contaminação química, como no caso dos agrotóxicos, as corporações estão tendo enorme sucesso na imposição do uso de sementes geneticamente modificadas. No caso do Brasil e da China, as facilidades para a comercialização deste tipo de semente são tão grandes que muitas empresas estão realizando a certificação inicial nestes dois países para depois passar a vender em outras partes do mundo. 

Mas foi justamente da China que surgem as primeiras evidências científicas de que é possível que o consumo de alimentos geneticamente modificados alterem aspectos importantes da regulação genética, o que pode implicar no surgimento de doenças graves como o Mal de Alzheimer. Se estas primeiras evidências forem confirmadas por novas pesquisas, o mito difundido pelas corporações sementeiras de que organismos geneticamente modificados não trazem efeitos negativos sobre a saúde humana cairá por terra. No entanto, nem isto garantirá que haja uma reversão das atuais tendências de manipulação dos alimentos que consumimos. Isto se dá porque foi justamente na área de produção de sementes e insumos químicos que houve um dos maiores processos de concentração de capitais e que tornou este setor um dos mais oligopolizados da economia mundial. Esta oligopolização no setor de agroquímicos trouxe consigo um poder político e econômico sem precedentes, com o qual as corporações influenciam as decisões dos governos nacionais em relação aos investimentos feitos na agricultura. 

Voltando ao caso brasileiro e à segurança alimentar, é interessante apontar que estamos vivenciando um processo onde as decisões estratégicas no tocante ao investimento na agricultura persistem em ignorar um fato básico, que é a preponderância da agricultura familiar na produção de alimentos para consumo humano. Em função disto, os investimentos feito governo federal continuam favorecendo o latifúndio agroexportador praticamente na proporção de 10 para 1 em detrimento dos agricultores familiares. Tal desproporção já está levando a um efeito nefasto que é o grande crescimento da importação de alimentos para a cesta básica dos brasileiros. Mas algo ainda mais devastador pode ocorrer se, por falta de recursos, mais agricultores familiares decidirem abandonar as zonas rurais em direção às cidades. A questão inescapável é que se isto acontecer, o Brasil estará cada vez mais dependente da produção gerada em outros países, o que representaria um grave desafio à nossa soberania alimentar.