domingo, 19 de fevereiro de 2012

Trabalho escravo perto da Av. Paulista


Nem todos desejam enxergar que o trabalho escravo ainda é uma realidade no Brasil. Quando o fazem, admitem que essa condição exploratória existe apenas nos rincões do País, em locais isolados da região Norte e Nordeste. No entanto, onze trabalhadores maranhenses que trabalham como pedreiros e serventes na ampliação do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, próximo à região da Avenida Paulista, em São Pualo, foram encontrados em condições análogas à escravidão, segundo informações da agência de notícias Repórter Brasil.

O grupo que trabalhava para a construtora Racional Engenharia, em obra próxima ao maior centro financeiro do País, foi libertado no final do mês de janeiro pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). O flagrante foi feito com base em denúncia de um trabalhador que teve seu salário retido por dois meses.

A retenção dos salários e às dívidas contraídas com o empreiteiro da obra restringiam a liberdade destes trabalhadores, de acordo com Luís Alexandre Faria, coordenador do Grupo de Combate ao Trabalho Escravo Urbano da Superintendência do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE/SP). Sem receber, eles acabaram sem poder regressar aos municípios de origem, em Santa Quitéria e Tutóia, ambos no estado do Maranhão.

Em resposta, representantes da Racional alegam que os empregados eram terceirizados e que a direção desconhecia as irregularidades encontradas.

Credor eterno

De acordo com a reportagem, dos onze operários, quatro foram aliciados no Maranhão e já chegaram a São Paulo endividados. Os demais trabalhavam em outra obra na capital.

Todos foram encaminhados para um alojamento em Itaquera, na Zona Leste da capital, onde, sem dinheiro, passaram a viver em condições precárias. Os operários utilizavam espumas de colchão como papel higiênico. De acordo com auditores fiscais do trabalho, eles não tinham dinheiro sequer para comprar cartões telefônicos e entrar em contato com familiares ou mesmo para se locomover dentro da cidade.

“A falta de dinheiro para voltar a seu Estado de origem e o constrangimento de retornar à família sem os salários prometidos completam o quadro de coerção moral a que eram submetidos, com clara restrição a seu direito fundamental de ir e vir”, destaca o relatório de fiscalização.

A operação foi finalizada em 10 de fevereiro, quando a Racional recebeu os 28 autos de infração pelas irregularidades encontradas. Deu-se o prazo de alguns dias para que a empresa pudesse se posicionar antes da divulgação do caso por parte da Repórter Brasil. Os trabalhadores retornaram ao Maranhão em 23 de janeiro, após receberem as verbas rescisórias e guias para sacar o Seguro Desemprego do Trabalhador Resgatado.

A obra de ampliação do Hospital Oswaldo Cruz conta com cerca de 280 trabalhadores. No local, ocorreu um acidente fatal em novembro de 2011: um operário morreu ao cair de um andaime da altura de oito andares. A Racional é uma das maiores empresas do ramo no Brasil e, em São Paulo (SP), foi responsável pela construção de shoppings como o Morumbi e o Pátio Higienópolis, de fábricas, hotéis, empresas e obras viárias, entre outras edificações de grande porte.

Alojamento precário

O alojamento no bairro de Itaquera, na Zona Leste da cidade, estava em condições ruins. Os empregados dormiam em camas improvisadas; por conta da falta de espaço, elas eram empilhadas formando beliches “totalmente inseguros”, de acordo com Luís Alexandre.

Dentro do alojamento, havia ainda instalações elétricas irregulares e um botijão de gás. O grupo dividia dois copos para beber água e os onze trabalhadores se revezavam para utilizar o único banheiro do local. Além disso, o empregador não disponibilizou papel higiênico, roupas de cama ou mesmo itens como sabonete e pasta de dente.

De 6 de dezembro, data do início da fiscalização, até a conclusão, foram feitas cinco inspeções no alojamento e na obra. Em 11 de janeiro, a Racional foi comunicada pelo MTE sobre as irregularidades encontradas no local em que os trabalhadores estavam abrigados. A empresa limitou-se a rescindir o contrato com a empreiteira Genecy. “Questionados sobre a quitação dos valores devidos aos trabalhadores, e à sua atual situação quanto a alojamento e alimentação, os representantes da Racional nada souberam informar, apenas apresentando à Auditoria os comprovantes de pagamento de R$ 435 a cada trabalhador desligado da obra”, frisa o relatório.

A Racional nega que tenha abandonado os trabalhadores após rescindir o contrato. “A Genecy quebrou o contrato ao não cumprir as suas obrigaçöes, inclusive a de não declarar a existência de alojamento. Ao tomar conhecimento do fato, a Racional atuou para garantir que a Genecy garantisse os direitos das pessoas envolvidas, o que efetivamente ocorreu”, sustentou a empresa, em nota encaminhada à Repórter Brasil.

A construtora alega ainda que exige de seus fornecedores que declarem quando há alojamento para que suas condições sejam avaliadas por uma auditoria externa. “Trata-se de compromisso social. Infelizmente, numa cidade como São Paulo, grande e descentralizada, nem sempre é possível investigar se as declarações dos fornecedores são verdadeiras ou não. Especialmente quando o fornecedor omite a informação. É importante esclarecer que o citado alojamento ficava em Itaquera, enquanto a obra ocorre nas mediações da Avenida Paulista. Seja como for, manteremos nossa postura de sempre atuar para que tais vulnerabilidades sejam mitigadas. A Racional reavalia sistematicamente todos os seus processos para que eles sigam em melhoria continua”.


Jornada irregular

Segundo os auditores fiscais, os operários resgatados chegam a trabalhar em feriados e em madrugadas no canteiro de obras, sem receber qualquer adicional ou mesmo folgas por isso. O serviço aos domingos também era frequente.

No dia 19 de janeiro, os auditores decidiram interditar o local em que o grupo ficava hospedado. Representantes da Racional se negaram a receber o Termo de Embargo, segundo o MTE. Os trabalhadores foram levados no mesmo dia para um hotel.

Os procuradores Luiz Fabre e Natasha Rebello Cabral, da Procuradoria Regional do Trabalho da 2ª Região (PRT-2), receberam o relatório da fiscalização e informaram à reportagem que devem se reunir com a empresa em breve para propor um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para buscar indenização po dano moral coletivo e também para prevenir que a situação volte a ocorrer. Caso a empresa se recuse, será ajuizada uma ação civil pública.