domingo, 12 de agosto de 2012

Armas em profusão unem os destinos trágicos de americanos e brasileiros 

Marcos A. Pedlowski, artigo publicado no número 257 da Revista Somos Assim


Nem bem esvaeceram os ecos dos tiros desferidos por um doutorando na área de biociências durante o lançamento do último filme de Batman numa pequena cidade do Colorado, aconteceu outro massacre, desta vez dentro de um templo da religião Sikh no estado de Wisconsin. Como estudei numa universidade que também foi palco de um massacre no estado da Virginia cujo autor foi um estudante da própria instituição, penso que ninguém discute que os Estados Unidos têm um sério problema relacionado à posse de armas. No entanto, ao contrário do que é disseminado pela mídia corporativa, este não é um problema causado apenas pela existência de um número excessivo de pessoas violentas ou de psicopatas. Pelo contrário, a questão da violência associada às armas de fogo faz parte de uma lógica maior do processo de consolidação do poder econômico e político que os EUA exercem sobre o mundo, que é a grande dependência existente em relação ao parque bélico. 

Assim sendo, ainda que a tradição armada com que a sociedade norte-americana se impôs sobre os nativos que habitavam o território antes da chegada dos colonizadores europeus seja um fator importante, é antes o lobby da indústria de armas que impede uma maior regulação na compra de armas e munições pelos norte-americanos. A compra de armas e munições é tão facilitada que até cadeias de lojas como o Walmart possuem seções especializadas onde se pode comprar de quase tudo. Lembro-me de uma ida a um Walmart no estado de Michigan em que eu e meu colega brasileiro ficamos espantados com uma montanha de caixas de bala de grosso calibre que estavam tão disponíveis quanto, por exemplo, as caixas de canetas que estávamos procurando. Mas não é só a disponibilidade que espanta, pois comprar também é algo bastante simples, bastando a apresentação de uma carteira de motorista válida para adquirir armas de baixo calibre. Quando o produto desejado é uma arma pesada, o interessado tem de esperar apenas alguns minutos para que o vendedor faça uma verificação rápida sobre a existência de possíveis impedimentos. 

Tanta facilidade tem uma explicação, pois a indústria de armas possui um ativo e poderoso lobby, dentre os quais a National Riffle Association (NRA), ou Associação Nacional de Rifles, é apenas a entidade com maior visibilidade. Esse poder é tão grande que não há em tempo recente registro de qualquer presidente dos EUA que tenha ousado tentar impor limites ao comércio, e menos ainda que tenha sido tentado a enfrentar o NRA. Assim, fossem republicanos ou democratas, todos os presidentes do pós-guerra sempre receberam representantes do NRA e raramente houve qualquer ação para limitar a facilidade com que as armas são comercializadas. A única personalidade política que apareceu na contracorrente deste alinhamento com a indústria de armas foi James Brady, assessor de imprensa de Ronald Reagan, que ficou paralítico após um atentado cometido em 1981. Desde então, Brady tem se dedicado a promover leis que restrinjam o acesso às armas. Mesmo Barack Obama, prêmio Nobel da Paz, tem sido extremamente tímido nesta área, já que o peso eleitoral do NRA não é nada desprezível, especialmente em anos de campanha presidencial. 

Em que pese todos esses aspectos preocupantes, eu diria que a situação dos EUA não é pior do que a que enfrentamos no Brasil. Ainda que aqui a legislação seja mais restritiva tanto para a aquisição como para o porte de armas, o problema é complicado pela existência de um amplo mercado, com facetas formais e clandestinas. Também no Brasil, o lobby da indústria de armas é extremamente poderoso. Basta nos lembrarmos do plebiscito realizado em 2005, quando a campanha pela manutenção do comércio de armas foi vitoriosa de forma acachapante. E não poderia ter sido diferente, pois as centenas de milhões que foram investidos pela indústria acabaram ditando o resultado. Desde então, o que se vê é a disseminação das armas, mesmo com a existência de uma legislação teoricamente restritiva. 

A situação brasileira é complicada pelo fato de estarmos inundados por armas contrabandeadas que chegam às mãos tanto de cidadãos comuns como de narcotraficantes ou membros de milícias. Aliás, no caso das milícias que atuam no Rio de Janeiro, a Comissão Parlamentar de Inquérito realizada pela Assembléia Legislativa, sob a presidência do deputado Marcelo Freixo (PSOL), rendeu uma série de informações que mostram uma estreita relação entre o comércio clandestino de armas e o profundo controle que estes grupos exercem sobre mais de 200 favelas na cidade do Rio de Janeiro, poder este que hoje se espalha por dezenas cidades do interior. E aqui parece estar uma diferença básica e para pior do caso brasileiro, pois não se tem notícia de nenhum esforço para coibir o comércio ilegal de armas desde a entrega do relatório final da CPI das milícias. 

E quem ainda não se perguntou sobre a ligação entre Brasil e EUA neste imbróglio todo, basta se perguntar sobre a origem das armas que são usadas para matar brasileiros todos os dias. Ganha uma viagem para Miami quem souber a resposta.