quarta-feira, 25 de setembro de 2013

A ministra e o coronel


(Tekoha Avá-Guarani na região de Guaíra, Paraná. Foto: Renato Santana/Cimi)


Por Ian Packer, CTI,,  de São Paulo (SP)

No dia 26 de agosto se comprovou mais uma vez o desastre da atuação de Gleisi Hoffman à frente da Casa Civil: veio à público o famigerado “laudo” que a Embrapa realizou a respeito dos Guarani que vivem no oeste do Paraná e sobre o qual a Ministra vem sustentando seus ataques aos direitos indígenas em geral e ao povo Guarani em particular.

Cabe lembrar que desde que Hoffman, valendo-se de seus poderes de forma soberana e unilateral, anunciou a suspensão dos procedimentos demarcatórios no Paraná e no Rio Grande do Sul, diversas lideranças e associações indígenas, organizações indigenistas, militantes de direitos humanos e parlamentares solicitaram cópia do documento, tendo o acesso a ele sistematicamente negado pela Embrapa e pela própria Casa Civil, num flagrante descumprimento da Lei da Informação. O “laudo” parece, contudo, não ter sido recusado aos ruralistas, que o publicaram em blog do agronegócio. Mas, afinal, por que esconder um documento de interesse público e que, segundo declarações de Gleisi Hoffman e do Ministro da Justiça, visa apenas “qualificar a tomada de decisões” no que diz respeito à demarcação de terras indígenas, tornando “o processo demarcatório mais transparente e mais dotado de informações”? Como dizia a Ministra em audiência no dia 8 de maio na Comissão de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural, “vamos ouvir e considerar nos estudos, além da FUNAI, o Ministério da Agricultura, o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Ministério das Cidades, entre outros órgãos, para que tenhamos uma base consistente para os estudos e demarcações quando for o caso”.

Ora, são as próprias palavras da Ministra que nos dão a resposta, na medida em que ecoam, quase 30 anos depois, as palavras do Coronel Nobre da Veiga. Quando, durante o período militar, esteve à frente da FUNAI (1979 -1981), o Coronel afirmou que “toda vez que é eleita uma área indígena, antes de ela ser decretada, de ser oficializada, procuramos encaminhar, como temos feito, aos Governos dos Estados, aos órgãos federais e estaduais que se interessam pela terra, tais como IBDF, CEMA, INCRA, o DNER, o DNPM, todos os institutos de terra do Estado, de maneira que não passamos à eleição da área sem que esses órgãos nos digam quais serão os problemas criados por essa eleição, para evitar os conflitos que hoje existem em quase todas as 250 reservas indígenas…” (Coronel Nobre da Veiga, Comissão da Câmara, 17/9/1980). Durante o regime militar, a subordinação da FUNAI ao INCRA, ao IBDF, etc, serviu assim para que fossem expedidas “certidões negativas” acerca da presença indígena em determinadas regiões, liberando-se as terras dos índios para a colonização e legitimando o esbulho e o massacre de populações inteiras. Coincidentemente (ou não), uma das regiões em que tais imposturas fizeram maior estrago foi justamente no Paraná, estado natal da Ministra. Depois de violentamente expropriados pelos colonos, pelo INCRA e pelo SPI de diversos tekoha em que viviam no oeste do estado, num processo que levou muitas famílias a fugirem para o Paraguai, os Guarani que resistiam em Oco’y-Jakutinga, próximo a Foz do Iguaçu, sofreram nova invasão de seus territórios. Com o beneplácito da FUNAI militarizada, que tomou a colonização como um dado e ignorou deliberadamente o histórico da presença Guarani na região, o INCRA em conjunto com o Instituto de Terra Estadual assentou colonos dentro das terras dos Guarani e a Itaipu inundou o restante.

Esse tipo de procedimento, não se limitou, contudo, ao caso de Oco’y-Jakutinga: foi prática corrente em todo o oeste do Paraná – e vemos que é nele em que a Ministra da Casa Civil parece se inspirar. Utilizando-se agora da Embrapa – que, no entanto, apressou-se em declarar publicamente que “não tem por atribuição recomendar, opinar, sugerir sobre aspectos antropológicos ou étnicos envolvendo a identificação, declaração ou demarcação de terras indígenas no Brasil” - Gleisi Hoffman busca repetir os procedimentos dos militares e a forma como eles trataram os Guarani, voltando-se agora contra os Guarani de Guaíra e Terra Roxa. Pretendendo atender à “demanda de analisar em curto prazo o caso da região de Guaíra (PR)”, o laudo da Embrapa fala apenas de bois, porcos, soja e milho e revela, por meio da abundância de fotos de silos, tratores e campos devastados, apenas sua paixão pelo agronegócio; pretendendo qualificar a presença Guarani na região, baseia-se somente em fotos de satélite e acusa-os de serem paraguaios ou migrantes vindos do Mato Grosso do Sul há pouco anos. Joga, assim, pra debaixo do tapete o violento esbulho que os Guarani sofreram ao longo de todo o século XX no oeste do Paraná, desde a exploração de sua mão-de-obra pela Companhia Mate Laranjeira na primeira metade do século XX e pelas companhias colonizadoras e fazendeiros dos anos 50 em diante, até a inundação de porções significativas de suas terras pela UHE de Itaipu nos anos 70. Esse histórico é denunciado de forma contundente pelos Guarani ainda hoje, como por Cláudio Barros, cacique de Tekoha Porã com 96 anos, todos eles vividos na região.

Mas o Ministério da Justiça e a Casa Civil não querem ouvir; ao contrário, preferem munir-se das desinformações produzidas pela EMBRAPA acerca da realidade e das origens dos conflitos que se instalam na região. A “desinformação” propagada pelo laudo atinge seu máximo quando, por meio de um esquema e sem explicitar nem mesmo seus próprios critérios e pressupostos, afirma que hoje não há índios nos Tekoha Porã, Karumbe’y, Marangatu (município de Guaíra) e Araguaju (município de Terra Roxa), sobre as quais a FUNAI já produziu alguns estudos antropológicos que atestam a presença e a tradicionalidade da ocupação Guarani nessas áreas. Não há, assim, outra forma de compreender esse tipo de afirmação, ao mesmo tempo categórica e infundada, do que como sendo motivada pelo propósito de invisibilizar as mais de 100 famílias Guarani que vivem ali, privando-as de maneira soberana de sua identidade étnica para assim privá-las do direito à terra. Julgando-se “técnico”, o laudo não faz mais do que replicar o racismo de que os Guarani são vítimas há décadas e repetir, uma vez mais, os militares e “os critérios de indianeidade” criados pelo Coronel Zanoni e por Célio Horst em 1979, contra os quais diversos intelectuais, antropólogos e defensores dos direitos humanos se sublevaram nos 80 e que julgávamos abandonados…

Depreende-se disso tudo que Gleisi Hoffman não apenas faz mal-uso das informações da Embrapa e das atribuições das diferentes instituições e organismos públicos, mas que seu intuito é de produzir uma fraude contra os Guarani, à exemplo dos coronéis e tenentes de outrora, e de legitimar o processo de expropriação territorial que sofrem os Guarani atualmente no oeste do Paraná. A política que ela vislumbra implantar é inteiramente contrária às conquistas obtidas pelos povos indígenas como resultado de suas lutas nos anos 80 e que foram um dos impulsos na luta pela redemocratização do país. E seu exemplo é seguido de perto pelos ruralistas e poderes locais, também eles sempre prontos a repetirem o passado e a reavivar velhas práticas autoritárias e violentas. No último dia 2 de agosto, uma jovem Guarani de cerca de 20 anos foi sequestrada em Guaíra por homens armados que abusaram sexualmente dela e pediram-lhe pra avisar a FUNAI e os índios “que os fazendeiros não vã permitir que eles fiquem por aqui” e que “nós vamos acabar com a FUNAI e com os índios”. O recado foi dado, mas na Casa Civil ele parece ter antes um cúmplice que um defensor das instituições e dos direitos constituídos. Ao querer atar as mãos da FUNAI e delegar à realização de estudos técnicos sobre uma população indígena a um organismo que não tem competência para isso, Hoffman assume um lado nos conflitos e dá carta branca para que se prolifere a violência contra os índios e contra o próprio Estado brasileiro. Subtrai, assim, uma vez mais aos Guarani seus direitos territoriais, reproduzindo uma lógica militar que há muito deveria ter sido superada mas que continua operando a todo vapor em suas mãos.